Redondamente enganado

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Descobertas e invenções podem mudar o mundo, mas o mundo tem lá o seu ritmo, difícil de mudar.

O espelho, por exemplo. Há quantas gerações convivemos com esse objeto delicado? Dezenas. Mas até hoje só vemos nele o que queremos ver.

A Terra é redonda. Isso não é novidade há séculos. Mas só agora começamos a perceber que jogar lixo no quintal do vizinho (e poluir a atmosfera e os oceanos) mais cedo ou menos tarde acaba sujando nossa sala de estar. O que é redondo não tem “canto de lá”.

A idéia de democracia também vem de longe, de tempos não tão democráticos assim, e continua grego para muita gente.

Se idéias e soluções crescem e amadurecem depois que nascem, o mesmo vale para problemas. Problemas são, em verdade, mais complicados, porque não morrem. Persistem. Idéias são como tamagochis, mínguam se não alimentarmos. Problemas são como praga. Teimam.

Faço toda essa volta para enfrentar algo que me incomoda no momento: a relativização do absurdo dos atentados recentes. Uns condenam parcialmente a “pax americana”, outros lembram outras injustiças “injustiçadas”, aqui e ali alguém diz que nada temos com isso.

Posso estar redondamente enganado, mas hoje o planeta tem por destino ser mais esférico a cada dia. Isso acirra problemas antigos, expõe fantasmas, e nos coloca tête-à-tête com o Outro, com os muitos Outros. Se esse Outro se apega a um sonho primitivo (de pastores de ovelhas e plantadores de trigo), ou se esse Outro luta por um mundo quadrado dentro de uma redoma opaca, ou se outro Outro se acha o centro de todos os círculos, o choque é inevitável, e as ondas de choque abalam cada vez mais.

Posso estar esfericamente enganado, mas o que vemos hoje são dores de parto. Idéias antigas se combinaram, se fecundaram, descobriram como se propagar e hoje contaminam o mundo com germes de autonomia, tolerância, alegria, dignidade. Ainda não estão maduras, ainda têm arestas, não estão redondas, mas já conseguem provocar reações febris e virulentas entre aqueles que andam em círculo.

Posso estar diametralmente enganado, mas não há volta. Nosso destino é o avanço. Se há alguma idade do ouro ou paraíso, está adiante, e não atrás. Nunca houve paraísos. Nunca houve felicidade plena. Nunca houve justiça perfeita. Nem igualdade entre os homens. Nem bem-estar total. Nunca.

Estamos na versão beta do nosso destino, e temos muitos bugs e crashes e formatações de disco a frente. Mas eu aposto minha vida na vida 2.0, na Terra 2.0. O resto é chato, muito chato, e se depender de mim, não rola.