First life first

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Para onde o sono me leva eu nunca sei, mas a volta eu bem conheço: o despertar passa sempre por um breve limbo, um mergulho no amorfo, bons segundos em suspenso até que eu aceite, quer queira quer não, que acordei na mesma cama, no mesmo quarto e que o sol, ainda mais teimoso que eu, vai nascer lá no seu canto sem maiores cerimônias.
Dez anos atrás era assim. Daqui a mais dez anos também. Hoje, porém, desligo o alarme do smartphone, confiro a hora, e ainda na cama dou uma breve olhada nos meus emails. Se eu descuidar da agenda, o que não é incomum, uma voz metálica há de me avisar a tempo: weekly conference call in thirty minutes. Ou vai me alertar, impecável, que tenho uma high priority message from… minha chefe. Ou, do chuveiro, vou ouvir alguém me ligar e o danadinho dizer call from fulano de tal. Nem me preocupo, o fulano pode me deixar recado; se ele me ligou no escritório e deixou mensagem, seu recado vai virar um arquivo de áudio e eu o recebo anexado por email, para escutá-lo quando quiser. Sem stress.
Há dez anos acordar não era assim, eu não “ouvia vozes”. Como acordarei em 2017?
Outro dia, num evento da Microsoft, estava eu com meus pares (outros User Experience Evangelists) refletindo sobre o futuro, sobre como a tecnologia haveria de se desenvolver, sobre tendências e tal. Pensou-se de tudo um pouco, e o exercício foi bom. Foi tão bom que me peguei pensando cada vez mais no futuro e no presente e sobretudo no passado, em épocas onde o nosso entorno não era assim tão acolhedor. Água? Tinha que buscar. Fogo? Tinha que fazer. Chão? Cuidado onde pisa. Céu? Uma caixinha de surpresas. Dia? Labuta. Noite? Perigos. Partir era morrer um pouco, e na dúvida melhor levar cantil, punhal, carne seca e fósforos. Ups, não havia fósforos.
Hoje, felizmente, tem uma padaria bárbara na esquina e só não vou de chinelos porque, well, detesto chinelos. Mas eu bem que podia. Se eu levar o celular e uns trocados já estou coberto. Levo minha câmera por vício, e meu canivete suíço por sentimentalidade.
Progresso é isso: algumas gerações de tecnólogos e pronto, o mundo nos envolveu como um útero elétrico com torneiras, tomadas, asfalto e amenidades ao alcance da mão. Não preciso levar um arsenal comigo. Basta um smartphone e meu escritório me acompanha no bolso. Levo na palma da mão o conhecimento quase inteiro da humanidade a um search de distância numa telinha colorida. Um pequeno peso extra no bolso me tira dos ombros o fardo de memorizar, saber, lembrar, me preocupar constantemente.
E daqui a dez anos? Vou andar carregado de mais gadgets por todos os bolsos apitando e piscando e vibrando e ficando sem bateria, como uma árvore de natal fantasiada de robocop? Ou (e essa é minha aposta) vamos andar cada vez mais desarmados, despreocupados, cada vez mais humanos? Well, não sei quanto a você, mas pra mim futuro não tem cara de second life nem de metaversos, futuro pra mim é first life first. E cada vez mais versos :^)
Podem me mandar pra terapia, podem me acusar do que for, mas eu quero mais é que o mundo seja a minha, a tua, a nossa ostra. Compromissos? Agenda? Lembrar aniversários e contas a pagar? Isso eu relegarei de muito bom grado à meu “rené virtual”, um agente virtual que há de ficar lá na second ou third life cuidando dos meus problemas quietinho e só há de me avisar para coisas do tipo:
– René, agora que chegamos em Madri e que você tem a tarde livre e o tempo será belíssimo, que tal assinarmos durante a sua estada um serviço local de dicas de entretenimento e cultura? Ele é gratuito se você aceitar sugestões personalizadas de compras nas imediações em que você estiver. Vamos testá-lo?
Eu vou aceitar prontamente e vou ficar muito feliz quando meu second-rené me disser:
– Que bom que você aceitou o serviço, porque hoje há uma feira de livros antigos no caminho do Museu Reina Sofia e basta esperar o ônibus ali na esquina e eu te aviso quando saltar. Essa feira está super bem cotada este ano. Aliás, quer que eu compartilhe com seus amigos onde você está e mande suas fotos?
Como meu “anjo da guarda” vai falar comigo? Imagino que… de todas as maneiras. Se eu colocar meu fone de ouvido (como o headset Bluetooth que tenho hoje) eu o escuto e ele me escuta. Se eu preferir, posso continuar interagindo com ele no meu celular por voz, e vendo imagens na telinha. Se eu precisar de um display maior, eu transfiro a conversa para qualquer computador conectado. A mesma experiência, a mesma riqueza de interação em qualquer interface que eu escolha, o tempo todo, quando e somente quando eu quiser. Alguém desenvolveu algum plug-in ou mash-up de algum serviço bacana? Eu o adiciono ao meu second-rené como o adiciono ao meu perfil no facebook. Um universo inteiro de Interoperabilidade e Open Standards e serviços plug-and-play para nossos eus virtuais num mundo de augmented reality e pervasive computing.
Que meu second-rené cuide de tudo enquanto eu faço o que ninguém pode fazer por mim: viver. Enquanto isso não vem, vou matutando em como há de ser desenhar experiências de usuário num cenário desse tipo. Vá pensando também, antes que outro designer de carne e osso pense antes de você ;^)

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