Milhões não são Megas

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Interessante… nunca começo um artigo pelo título. Muitas vezes inicio sabendo como quero terminar, por vezes só sei como começar, mas o título quase sempre só aparece nos 45 do segundo tempo, quando estou prestes a enviar o que escrevi sem rascunho nem nada. Hoje, curiosamente, não: o título me pulou no colo mal pulei da cama.
Eu poderia usar outros, claro. Por exemplo: “Por onde anda Belchior?” me ocorreu logo em seguida, mas fiquei com receio de que alguém respondesse e eu tivesse que optar entre um Belchior real, concreto e sabe-se-lá-fazendo-o-quê e meu Belchior particular, o cara que colocou na voz da Elis “Como nossos Pais”. Como sou um cara meio sentimental, vou preservar meu Belchior criogênico lá no fundo da memória e do coração.
Por que lembrei da Elis e dessa canção? Talvez porque, como já cantou a própria Elis, eu tenho mais de vinte anos, eu tenho mais de mil perguntas sem resposta (belíssima canção, procurem). Talvez porque me caiu a ficha (e lá vai Elis de novo) que
“você não sente e não vê mas eu não posso deixar de dizer, meu amigo”
que
“o que há algum tempo era novo e jovem, hoje é antigo, e precisamos todos rejuvenescer”.
Êta nóis, acordei saudosista hoje.
Saudade do quê, afinal? Do tempo em que cantávamos todos “Uma nova mudança em breve vai acontecer” e achávamos que a tecnologia iria nos redimir, nos salvar, nos levar pela mão para longe da lama rumo a um éden onde em se clicando, tudo dá? Pode ser. Hoje olho em volta e noto que, apesar da internet ter se tornado tão onipresente e invisível quanto o ar que se respira, a gente não conseguiu escapar de um inimigo mais onipresente e invisível ainda: as nossas idiossincrasias.
Na faculdade ensinam pra nós que cada povo tem sua maneira de ver e entender e se relacionar com o mundo, e que isso se chama cultura (ué, mas cultura não era aquela televisão que passava coisas “culturais”? …) . Na cultura esquimó há N palavras pra cor branca, pois eles distinguem N tipos diferentes de branco, enquanto nós, brancos ou não, só vemos um brancãozão. O mesmo com índios brasileiros: Y palavras diferentes para tons de verde. E por aí vai, bom assunto pra mesa de bar. Poucos, porém, param pra pensar que isso vale pra todo mundo, incluindo este que vos fala e vós que me ledes (ups, como soa estranho).
Pois é, aí está meu ponto: o tempo passou, o tempo voou e continuamos prisioneiros de alguns vícios de comportamento e de mentalidade que só nos atrapalham. O problema é que falar de ética e moralidade e cultura é algo complicado, sonífero, faz todo mundo abandonar artigo no meio. Mais ou menos como “programas culturais”. Muda aí logo o canal pra videocacetadas! (eu detesto)
Mas, como diriam os melhores infomercials (eu adoro informercials), seus problemas acabaram! Chega de carregar um arsenal de ferramentas e questionamentos e critérios! Leve agora o canivete suíço de todas as incertezas, a silver-tape de todas as dúvidas, a pergunta de UM MILHÃO… de vezes!
A pergunta é: e se isso for feito um milhão de vezes?
Pronto. Taí a pergunta de um milhão de dólares. Ou um bilhão. Ou de 150 milhões de pessoas. Ou de um bilhão de internautas. E se isso for feito um zilhão de vezes?
Você, por pressa, vai acochambrar um código? Você, por preguiça, vai publicar um site com um formulário mal elaborado? Você, por comodismo, jogou no colo do usuário final uma solução chata de usar, intrincada e mal-acabada? Que mal há nisso, afinal? É uma vezinha só, não é?
Não. Não é.
Essa decisão meio vergonhosa, aquele “deixa-quieto” que você não gostaria de assumir em público, esse “é só desta vez” que você imagina que ninguém vai perceber vai ser repetido e repetido e repetido e usado e usado e reusado milhões de vezes por zilhões de pessoas. E em cada uma dessas vezes elas vão xingar você.
Pense sempre: isso vai ser repetido um milhão de vezes. User-experience ruim elevada a enésima impotência.
Pense nisso ao fazer design, ao fazer código, ao bolar a experiência do usuário, na hora de comprar software, antes de piratear, antes de mandar emails, antes de postar no blog… Como seria o mundo se isso que você está prestes a fazer fosse repetido um milhão, um bilhão de vezes por todo o mundo?
Um milhão de bytes é um megabyte. Um milhão de usuários é um milhão de pessoas como eu e você, com nome e sobrenome.
(Para algumas perguntas dessas nem precisa imaginar muito: é só olhar em torno, é só ligar a tevê, é só pensar em Brasília… “Cultura”de uma nação dá nisso, nossa miséria vem daquilo que é feito por todos um milhão de vezes e ninguém nem percebe mais)
Aliás… acaba de me ocorrer uma tese: se você quer saber onde se escondem seus vícios ocultos, é só reconhecer onde você anda em círculos e pronto, a mania está lá no centro, num ponto eqüidistante de todas as decisões meia-boca.
Eu sei que muitos dos nossos vícios culturais e profissionais são parte de nós, foram passados de pai pra filho com muito empenho, que a gente até acha graça em algumas das nossas “espertezas”. Eu também me apego a algumas manias, assim como me apego a um Belchior imaginário. Mas, citando o bardo,
O presente, o corpo, a mente é diferente e o passado é uma roupa que não nos serve mais.

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