Onde Diz Push, Empurre: a questão do cenário de uso

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“É uma porta.”

Tomara que ele não ouça isso, tomara que seja surdo como uma porta. Eu, no seu lugar, ficaria ofendidí­ssimo. Afinal, quem gosta de se sentir burro?

Ele ouviu. Era um professor peculiarí­ssimo, um ponto fora da curva sob qualquer aspecto: esquisito, mal proporcionado, hostil… mas parecia feliz consigo mesmo. Nunca se abalou com as piadas e apelidos e a rapaziada imitando.

Imperturbável, o senhor bizarro, até que um dia…

Numa prova, um aluno irritado deixou escapar algo como o cara é uma porta. Para espanto geral, o professor subiu nas tamancas, perdeu as estribeiras. Bradava, transtornado: podem me chamar de palhaço, do que for, mas de incompetente, JAMAIS!. Saia justa.

Agora fica a questão: por que uma porta é burra? Um burro parece burro, uma anta idem, mas uma porta… Eu convivo com portas de todo tipo, algumas educadí­ssimas que se abrem mal eu apareço, outras discretí­ssimas que se fecham com polidez, mas portas burras, não me ocorre nenhuma. Teimosas, talvez? Feiinhas? Mas de burras, não me lembro.

Algumas portas lindas, nobres e elegantes te fazem sentir burro, isso sim, e isso é imperdoável.

Portas anti-pânico, aquelas de saí­da de cinema, devem ser ótimas se você estiver em pânico, com uma turba descontrolada te prensando contra a dita cuja. Mas se você estiver calminho, querendo comprar pipocas, a porta é um porre. Cadê a maçaneta? Puxo ou empurro? Sorte que está escuro, porque ao menos ninguém testemunha você sendo burro… como uma porta.

Falar em portas é uma boa maneira de abrir as portas para uma questão fundamental em qualquer projeto interativo: o cenário de uso.

Ilustremos: o cliente te pede põe uma porta aí­. Que tipo de porta?, você pergunta. O cliente, que tem mais o que fazer, diz delicadamente uma porta, sua porta!. Pronto, abram-se as Portas da Desesperança. Vai começar uma novela de desentendimentos.

Você escolhe uma porta esplêndida, de titânio, com maçanetas italianas, e com um originalí­ssimo funcionamento articulado. Desastre total: ali é a saí­da de um aeroporto, e nesse cenário de uso:

  • O usuário quer sair daquele lugar, e uma porta tão estilosa parece entrada, não uma saí­da.
  • O usuário está com malas e sacolas, e não vai ter mãos pra maçaneta nenhuma.
  • O usuário quer mais é sumir dali, e não vai parar para fechar a porta atrás de si.
  • O usuário está vendo a porta pela primeira vez e não vai revê-la assim tão cedo, portanto não vai querer se dar ao trabalho de aprender truques.
  • Os usuários vêm em massa, e uma porteira de gado seria mais eficiente do que uma porta conta-gotas.

Metáforas à parte, um dos aspectos mais importantes no mundo interativo é o cenário de uso. Usuários usam, usuários querem usar tua interface para alguma coisa, não só para ficar olhando. Como ele quer usá-la? Qual o contexto?

Pensemos num exemplo concreto: uma loja online. Enquanto ele está passeando pela loja, conferindo produtos e ofertas, sua atitude é uma. A hora em que ele opta por colocar um produto no carrinho, a atitude é outra.

Na primeira os atributos do produto, as ofertas são o foco, e o usuário vai se sentir mais à vontade se puder fuçar por conta própria, sem compromisso, sem consequência.

Na hora do carrinho as coisas mudam. Agora qualquer besteira que ele fizer pode ter consequências, agora é tudo mais sério, e embora seja um cenário muito mais racional, pode ser um excelente momento para segurar na mão do usuário e transmitir-lhe segurança e apoio. É uma hora de decisão, de ação, e ele pode não estar familiarizado com o processo. Ele pode ter medo de errar.

No primeiro cenário o que conta é a sedução, a liberdade, o descompromisso. No segundo cenário a confiança, a privacidade e a facilidade são as tônicas. Quando você desenhar as interfaces, a comunicação, o processo todo, você deve levar em conta essa diferença de ambientes. Na cabeça do usuário, ele abriu uma porta e passou para um outro espaço, um espaço com outras regras. Se você for designer ou arquiteto de informação, não tenha pudores em mudar a cara da interface.

Numa mudança de cenário desse tipo, o usuário não vai ficar desorientado se alguns elementos sumirem, pelo contrário: vai ter certeza de que abriu a porta certa e passou para outra sala.

Comprei um guarda-chuva de um camelô outro dia. Cinco reau. Valeu cada centavo: eu precisava andar três quarteirões na Paulista debaixo de um pé d’água, e o tal guarda-chuva plin-plan-plum, se abriu automaticamente. Cheguei onde queria, e o fechei sem maiores dramas. Claro que eu o esqueci nem sei onde, mas não fiquei triste. Ele cumpriu sua missão, e se eu precisar de novo, sei que vai ser fácil achar.

Mas porém contudo todavia se o cenário fosse outro, se fosse um evento no Jockey, se fosse um presente de dia dos pais, se eu fosse aparecer na Caras, meu guarda-chuva chingling… não passaria da porta.

Mas se eu estou na chuva, é para não me molhar.

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