Quadrinhos, quando eu era criança, deixavam adultos de cabelo em pé.
— É perda de tempo!
— Emburrece!
— Vai ler livro de verdade, menino!
Eu lia livros de verdade, oras. Continuo lendo. Livrarias são minha perdição deliciosa, e não faz nem três dias que eu estava com quilos de livros nas mãos diante de um leitor de código de barras vendo o preço de cada um. Um Umberto Eco, dois Cortazar no original, uma Hannah Arendt, uma coletânea de cartoons da New Yorker… Aquela montanha de letrinhas foi sendo traduzida numa bola de neve de números e, por fim, deixei os livros lá com dor no coração. Nem passei pela seção de quadrinhos pra não sofrer mais. Estava no meio de uma viagem, afinal, com grana contada e mala cheia. Fica pra outra hora.
Os quadrinhos e livros me vieram à cabeça por um bom par de razões. Primeiro por serem mídia impressa, por serem “antiquados”. Segundo por terem peso, ocuparem espaço. Terceiro por terem preço, por custarem dinheiro. Quarto por terem um autor, alguém que tenta ganhar seu pão criando conteúdo. Quinto por serem experiências ricas e imersivas e transformadoras, mesmo sendo low-tech, e aí está para mim o ponto principal: num mundo em que more is more, em que limites parecem ter desaparecido, a máxima (ou seria mínima?) “less is more” ainda continua sendo o máximo. Pra dizer o mínimo : )
Sem fazer pouco do “less is more”, porém, eu quero mais. Embora muita coisa no mundo se resuma a somar ou subtrair, aquilo que realmente conta é multiplicar. Criar é multiplicar. Inventar é multiplicar. Compartilhar, mesmo que pareça dividir, é multiplicar. Coisas realmente vivas e vitais dão vida, são fecundas, lançam sementes pra todo lado. E sementes são uma invenção extraordinária, uma bolotinha de nada que tem dentro de si girassóis, carvalhos gigantes, pés de maçã, árvores fantásticas que vão crescer pelo tempo afora zipadinhas e codificadas numa pelotinha dorminhoca.
Você já parou pra pensar que uma semente é código? Que DNA é código? Que você é do jeito que é porque isso foi codificado láááá atrás por um óvulo e um espermatozóide? Dá o que pensar, não? Noventa e tanto dos átomos do teu corpo vão ser trocados em alguns anos. Ninguém vai perceber, porque o teu código não mudou. Se mudar, corra pro médico aliás.
Well, voltemos pra história dos livros. Daqueles fatores que mencionei quatro deles parecem pecado: são físicos, ocupam espaço, não são grátis e, pra complicar, tem alguém cobrando por eles. Por quê isso virou pecado hoje eu não sei, não consigo entender, sobretudo porque pecado, para mim, não tem nada a ver com preço, peso, ou outros valores numéricos. Pecado pra mim é não dar valor àquilo que matemática alguma leva em conta: o valor da experiência fecunda. E experiências fecundas não se criam somando um montão de vídeos e animações e efeitos e firulas. Experiência fecunda não é estufar a pança com junk food, é buscar o que te alimenta e o que te enriquece os sentidos.
Se eu procurar alguém para contratar eu não quero alguém que tenha visto todos os vídeos do Youtube ou leia todos os blogs pessoais ou tenha jogado finalizado os games x, y, z. Isso é achar que acumular e somar e amontoar dão algum resultado. Well, dão sim: obesidade mental mórbida. Pior: estar a par de tudo não te garante idéias ímpares. Pelo contrário: você dificilmente vai escapar da maldição do “mais do mesmo” (obrigado, mestre Laerte).
Livros e quadrinhos, essas coisas antiquadas, têm uma feature avançadíssima que a tecnologia demorou pra imitar: pausa. Livro você pausa, pensa, relê. Para ler um bom livro você aperta PAUSE na tua correria e cria um tempo especial para uma experiência que vai reprogramar o código da tua mente. Um bom poema é mágico para sempre, sem envelhecer jamais.
Um adendo: Neil Gailman, o criador genial do Sandman, escreve as histórias à mão. Computador, segundo ele, facilita demais a dispersão. Uma procuradinha na internet, um clique à toa e lá se vão horas embora sem proveito algum.
Se você não souber reprogramar tua mente ela vai fazer o mesmo que o teu código genético: vai reproduzir mais do mesmo até morrer. E quem só faz mais do mesmo morre sem deixar nada fecundo.
Que bom que você está lendo esta revista. Bom sinal.