Os Intocáveis

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(…) estamos sempre tropeçando da mesma maneira, vamos sempre ter os mesmos problemas. E, se tudo no mundo tem uma causa, problemas repetidos só podem ser… efeito de causas crônicas.

E como algo que causa problemas pode ser crônico? Simples: porque não se fala dela. Não pega bem. Não é “legal”. Nesse assunto ninguém toca. (…)

Eu estava prestes a começar este artigo dizendo “você que gosta de idiomas…”, mas me toquei a tempo que pouca gente tem apreço por línguas. Deletei tudo, e recomecei com “você que lida muito com estrangeiros…”. Deleta deleta deleta. De volta ao cursor piscando no início de uma página branca.

É raro eu travar. Normalmente eu saio escrevendo/palestrando/gravando sem o menor embaraço, e as idéias vão se concatenando naturalmente, haja vista/ouvido o improviso do podcast Roda e Avisa (https://www.usina.com/rodaeavisa ) .

Um tema, porém, quebra essa regra. Se eu não esvaziasse a lixeirinha do meu desktop ela pareceria hoje um cesto de papéis de escritor empacado, coberta por folhas amassadas atiradas com fúria.

Que tema é esse? Simples: o que não se diz. Ponto. Complicadíssimo, o tema.

Falemos de fotografia, então, pra facilitar. Todo mundo tem câmera, e todo mundo gosta de uma boa foto, não? Pois bem, comecemos por aí.

Câmeras retratam a realidade, certo? Câmeras não mentem.

Olhemos então aquele teu álbum de viagem. Monumentos, belas paisagens, momentos dignos de uma foto, pessoas posando. Álbum é sempre assim. Agora reveja as fotos e me diga: o que não aparece?

Enquanto você digere a pergunta, eu dou uma pista: câmeras têm lentes, e com lentes você enquadra. Quando você enquadra algo, seleciona o que vai aparecer… e o que não vai aparecer. A menos que você ande fazendo fotos em 360 pelo mundo… o que aparece é uma fração bem pequenina comparado com o mundão que não aparece.

Você fotografou o mendigo? O prédio feio? As pessoas infelizes? O céu chuvoso? A sua mala bagunçada? Provavelmente não. Isso não é coisa que se mostra normalmente, e a gente nem registra na memória.

(Paulistanos como eu são PHD nisso: conseguem não-ver o caos e enxergar só o que é bacana na cidade, vide http://www.flickr.com/photos/renedepaula)

Deve fazer parte da nossa natureza “maquiar” a realidade e deixar de lado coisas que “não ornam”. Isso é sinal de urbanidade e educação, inclusive, e cada cultura ou língua (lá venho eu com idiomas e gringos de novo) lidam de maneiras diferentes com isso. Em alguns países é inadmissível se falar da vida íntima, em outros ninguém tem pudor em dizer que teu cabelo está horrível.

Varia muito, mas uma coisa é certa: algumas coisas nunca são ditas. Outra coisa é certa: isso tem um preço, um preço que pagamos a prazo porque não enfrentamos as coisas à vista.

Nosso ofício interativo não escapa dessa sina, e a prova é: estamos sempre tropeçando da mesma maneira, vamos sempre ter os mesmos problemas. E, se tudo no mundo tem uma causa, problemas repetidos só podem ser… efeito de causas crônicas.

E como algo que causa problemas pode ser crônico? Simples: porque não se fala dela. Não pega bem. Não é “legal”. Nesse assunto ninguém toca.

Tem gente que (sobre)vive disso: você já deve ter visto um “intocável”, uma daquelas figuras que orbitam em torno desse área fortificada. Sempre tem: por vezes os criativos são intocáveis, por vezes os engenheiros, por vezes os “chegados” do chefe.

Nem tudo que é intocável, porém, tem que ser eterno. Muitas vezes os nossos monstros sagrados são tigres de papel, basta um assoprão e eles somem da nossa vida. E é pensando nisso, nesse exorcismo dos nossos fantasmas crônicos é que eu sugiro um remédio importado: o post-mortem.

Post-mortem é um apelido dado a uma avaliação do que foi bom ou ruim durante um projeto. Acabou o projeto? Post-mortem nele.

Quer tentar fazer? Acabo de fazer um bem simples: cada um dos envolvidos listou ao menos três coisas que foram ótimas, três que foram boas e três que foram ruins. Um coordenador vai juntar tudo isso, consolidar e compartilhar com todos. De um post-mortem simples assim pode nascer um plano para que os erros não mais se repitam e também para que inovações positivas sejam incorporadas ao processo.

Simples. Transparente. Mas levemente arriscado, também: um brasileiro pode se magoar porque o estrangeiro não teve papas na língua, ou um outro latino pode ter sido mais passional do que devia, ou… Ok, lá venho eu de novo com línguas e culturas 🙂 Que mania.

Aponte minhas manias por favor, não tem problema. Aponte-as ou… vou repetir a dose nas próximas edições 🙂

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